Nesta semana, completa-se 30 anos de um dos capítulos mais importantes da história do automobilismo brasileiro:
o segundo título mundial de Nelson Piquet. Para celebrar a data, o Esporte Espetacular fez uma entrevista especial com o tricampeão. No papo com Reginaldo Leme, ele falou do título com a equipe Brabham-BMW, assegurado com um terceiro lugar em Kyalami, no GP da África do Sul que coroou uma batalha ponto a ponto com o francês Alain Prost, da Renault. Além disso, o ídolo brasileiro fez um balanço de sua carreira: relembrou inovações técnicas em dupla com Gordon Murray (projetista da Brabham), analisou o impacto de dois graves acidentes (Ímola/1987 e Indianápolis/1992) em sua vida e comparou a Fórmula 1 atual com a de seu tempo.
Nelson Piquet conversa com Reginaldo Leme em entrevista ao Esporte Espetacular (Foto: Rafael Lopes)
Confira a entrevista completa, com trechos exclusivos que não foram ao ar na TV:
Conte as lembranças da temporada de 1983, o ano do bicampeonato.
Foi um dos anos mais bacanas pra mim. Primeiro que nós desenvolvemos muito o carro em 1982. Estávamos dois anos atrasados da era turbo, dois anos atrasados da Renault e da Ferrari. Desenvolvemos 82 aos trancos e barrancos e em 1983 entramos para ganhar o campeonato. E quando você começa um desenvolvimento, carro novo – saiu do carro-asa e foi para o carro turbo, muita coisa junta –, eu sei trabalhar. Ainda mais com o desenvolvimento dos pneus Michelin. Não só fomos os primeiros a ganhar o campeonato turbo, mas fomos os primeiros a ganhar campeonato com a Michelin. Então, tudo isso dá uma satisfação muito grande, porque é um trabalho de equipe, um trabalho de desenvolvimento. É a BMW, é a Brabham, é a Michelin. Tudo isso junto. Vemos quantas horas nós testamos pneu e outras coisas para chegar ao que nós chegamos.
Brabham BT52B de motor BMW, com a qual Nelson Piquet foi bicampeão em 1983 (Foto: Getty Images)
Quais foram seus principais rivais? Pela Renault tinha Alain Prost e René Arnoux, pela Ferrari, o Patrick Tambay. O Keke Rosber estava na Williams, que não passava um bom momento.
O adversário sério mesmo era o Prost. Inclusive, na ultima corrida eu precisava ganhar a corrida se ele chegasse em segundo, e nós saímos preparados mesmo para ganhar a corrida de Kyalami.
Quando você foi para essa corrida decisiva em Kyalami, o Prost tinha um ponto a mais no campeonato. Como foi a decisão sua e da equipe Brabham de adotar uma estratégia que surpreendesse todo mundo?
Precisávamos de 220 litros (de combustível) pra terminar a corrida. Saímos com 70, com o carro superleve, e abrimos quase três segundos por volta. Isso deixou o Prost muito nervoso. Abrimos o suficiente para fazer o pit stop e sair ainda na frente de todo mundo. Quando o Prost entrou para fazer o reabastecimento, eu já estava meia volta na frente. E aí ele saiu, começou a aumentar a pressão no turbo e o motor quebrou. Isso era metade da corrida. Aí eu fui tirando a pressão, administrando a corrida. Passei para segundo, terceiro. E aí mantive, porque o meu objetivo era ganhar o campeonato, não queria ter nenhum risco de querer ganhar a corrida e acabar perdendo o campeonato.
Francês Alain Prost, na época na Renault, foi principal rival de Piquet (Foto: AFP)
A vitória do (Riccardo) Patrese foi legal..
Teve o segundo lugar do (Niki) Lauda, que era meu amigo.
Naquela temporada você teve uma batida com o Prost na Holanda. Como é que foi isso?
Aquele acidente foi uma coisa até boa para mim. Estava liderando a corrida, mas perdi estabilidade traseira do carro porque um dos amortecedores traseiros quebrou. Então chegaria ali em segundo ou terceiro, e o Prost faria alguns pontos a mais que eu. Aí ele entrou numa freada muito forte em cima de mim e bateu no meu carro, me tirando da corrida. Mas ele danificou a asa dianteira dele também e na volta seguinte foi reto na curva longa e saiu da pista também. Com isso ficou zero a zero e não teve problema.
E seu carro pegou fogo em Hockenheim, na Alemanha...
Não lembro. Passou muito tempo...
Em 1983 você ganhou três corridas: Brasil, Itália e Brands Hatch. Você pensava muito no campeonato. Foi isso que te deu o título? A partir de que momento você sentiu que dava para ganhar?
Em Monza o Paul Rosche (chefe da BMW) trouxe no bolso uma rodela do compressor da turbina. Quando montou isso e eu saí pra andar, o turboleg – como chamava a falta de entrada do cubo – ficou quase perfeito. Pensei: "Com esse motor aqui vai ser muito fácil dirigir e ganhar esse campeonato".
Nelson Piquet venceu a corrida no Brasil, no Rio de Janeiro (Foto: Agência Getty Images)
Você considera sua dupla com Gordon Murray, projetista da Brabham na época, uma das mais perfeitas da historia da Fórmula 1 em termos de criatividade?
Não gosto de falar da minha pessoa, falar do Gordon. Acho que foi muito bacana. Nós fizemos o pit stop, começamos a esquentar pneus na Fórmula 1 - coisa que eu já fazia na Fórmula 3 -, começamos a fazer todas as barras estabilizadoras reguláveis dentro do carro. Acho que foi uma época muito boa, do carro-asa, eu ia para os túneis de Southampton junto com o Gordon com os modelos dentro da mala do carro, passava as tardes de sábado e domingo que não tinha corrida no túnel de vento. Eu mesmo fui aprendendo muita coisa de curiosidade, porque não sou engenheiro, mas a curiosidade me ajudou muito.
Você disse que não é engenheiro. Mas você sempre gostou muito de mecânica. Isso te ajudou na tua carreira?
Eu fiz dois anos e meio de engenharia, mas larguei. Mas era só conta. Parte de projetos foi mais na prática mesmo. Continuo fazendo meus marcos, tudo, as invenções que faço. Naquela época ajudava muito. Hoje em dia não. Hoje você não precisa ser “engenheiro”. Esses anos de 81, 82, 83, 84 foram maravilhosos.
O que diz do motor, carro, equipe. Primeiro turbo campeão, motor 4 cilindros...
O motor era fantástico. O desenvolvimento foi crescendo durante esse ano, e em 84 eles nem sabiam mais a potência que tinha o motor, porque o dinamômetro da BMW ia até 1.100 cavalos, e com dois mil giros antes o motor já completava os 1.100 cavalos. Eles não sabiam se era 1.200, 1.300, 1.350. Tínhamos uma potência enorme na classificação. Em 84 fiz nove pole-positions, liderei 12 corridas e cheguei em três. Porque aí o bloco ficou muito fraco e o motor quebrava muito. Teve esse problema. Mas o motor era fantástico. O carro que o Gordon fez era revolucionário. Saiu do carro-asa para esse carro todo em flecha. Ele botou todo o peso do carro, radiador, tudo atrás, e colocou o piloto bem na frente, tinha um tanque de gasolina enorme. Mas era um carro lindo, bom de guiar.
Naquela época as equipes trabalhavam seus próprios combustíveis. A BMW fez um trabalho importante?
A partir de 83 a pressão dos motores foi subindo muito. E a BMW usou uns caras bem velhos, que faziam as gasolinas sintéticas na Segunda Guerra Mundial. Eles trabalharam essas gasolinas, que tinham que ter 100 octanos e podiam ser feitas de qualquer tipo de material. E eles conseguiram fazer uma gasolina que tinha um cheiro esquisitíssimo, mas era muito potente.
A equipe tinha desenvolvido um sistema de pit stop muito eficiente.
Quando veio com a ideia, o Gordon foi para os EUA, viu uma corrida de Indianapolis, viu todo o sistema funcionando e mais ou menos copiou. Ele quis ver como é que era, e nós fizemos, treinamos bastante. Começamos a aquecer os pneus, porque não adiantava ter os pneus frios depois do pit stop porque perderíamos muito tempo. E era uma coisa sensacional. Andávamos com o carro muito mais leve e blefávamos. Tinha corrida que o carro estava tão superior que saíamos com o tanque cheio mesmo e não fazíamos o pit stop. Todo mundo ficava pensando que iríamos fazer o pit stop, e não fazíamos. Estávamos dez, 15, 20 segundos na frente, e todo mundo pensava que iríamos parar, mas não acontecia.
Fazendo uma avaliação de sua carreia na F-1. Foram 204 GPs. Qual foi a melhor época?
Eu tive a era carro-asa, era turbo, inventamos pit stop. Acho que os anos 80 foram anos bem interessantes para a corrida, e graças a Deus eu estava nessa época.
Como está vendo a Fórmula 1 hoje?
A opinião é geral. Hoje não é mais um campeonato de pilotos. É um campeonato de tecnologia. A aerodinâmica hoje é 75% de um carro. Qualquer piloto que você pegar ali dos bons e botar num carro ganhador vai vencer. É estratégia e toda parte de aerodinâmica. No nosso tempo era diferente. Tudo bem, contava aerodinâmica, contava parte mecânica, mas nós éramos a ligação com a engenharia. Se você não tivesse um piloto para saber o que estava acontecendo e passar toda essa informação para os engenheiros, o carro não melhoraria. Hoje em dia o piloto precisa ser muito rápido e não fazer besteira. Se você escutar os rádios hoje, na primeira volta eles falam tudo: “Acelera agora, vai queimar a largada agora, bota no número tal”. É um campeonato de tecnologia mesmo. Mas até para isso você precisa ter os pilotos bons lá.
Você acha que isso explica um Michael Schumacher? De ele ter entendido essa tecnologia?
Ele foi bom. Tem que dar valor a ele. Ele pegou um time que estava há 20 anos sem ganhar nada. Fez, organizou, teve a capacidade de juntar os engenheiros certos e foi lá e ganhou quantas vezes ganhou. Então não adianta querer falar mal “foi por isso, foi por aquilo”. Não. Foi bom mesmo, teve o tempo dele e, logicamente, perpetuou naquele tempo. Talvez se ele tivesse sido da nossa época teria ganhado um, dois ou três campeonatos, não tudo isso, porque seria mais difícil você ter uma hegemonia de estar ali com aquele grupo e ganhar tudo. Um ano ganhava um, no outro ganhava outro. Aparecia a BMW, depois a Renault, depois a Ferrari, sempre foi dividido assim.
Michael Schumacher foi companheiro de Nelson Piquet na Benetton em 1991 (Foto: Getty Images)
E o Fernando Alonso. Você acha que é um cara no nível do Schumacher, seu, do Senna do Prost?
Sem dúvida. Acho que todos ali estão no mesmo nível. Talvez se o carro fosse inferior e dependesse mais deles, eles poderiam se mostrar melhores do que são.
A maior fase técnica da Fórmula 1, de pilotos mais talentosos, foi aquele quarteto Piquet, Mansell, Senna e Prost?
Senna pegou o finzinho, né?. Eu já estava saindo da Fórmula 1. Mas teve o tempo do Alan Jones, o Lauda retornou... Acho difícil comparar os tempos. Hoje tem seis campeões mundiais correndo (são cinco). A única coisa que mudou mesmo foi que a tecnologia cresceu mais, e a parte humana não pode crescer.
A temporada de 1980 foi um campeonato que você lamenta ter perdido? Aquele motor que quebrou no Canadá. Você superaria o Alan Jones e ele não te pegaria mais.
Não. Foi um campeonato que aconteceu. Primeiro, o carro bateu na largada, peguei o carro reserva. O carro reserva não tinha um motor de corrida, ninguém estava esperando o que aconteceu. Os times eram pequenos, e no meio da corrida o motor quebrou. Foi um ano que deveria ter ganhado.
Em 1982 teve aquela briga com o Eliseo Salazar...
Foi mais pitoresco ainda porque a BMW contou para nós que foi a melhor coisa que aconteceu para eles, porque o motor não ia conseguir dar mais uma volta. A saia do pistão já tinha quebrado, então o motor ia fazer mais uma, duas retas e ia enfumaçar. Então para eles a melhor coisa que aconteceu foi aquela briga. Depois eu fui contratado pela televisão chilena que o Salazar fazia entrevista, e aí fizeram toda uma encenação de que ele ia me entrevistar, mas na verdade eu ia agarrar no pescoço dele lá. Fizemos uma brincadeira lá.
Teve o acidente de Ímola, em 1987. Eu lembro o quanto aquilo te prejudicou. Você mesmo falou da perda de um segundo por volta. Perda que começou a diminuir com o tempo e no fim do ano você ainda foi campeão.
Olha, ali praticamente acabou minha carreira. Eu consegui ganhar o campeonato, fui muito esperto de conseguir ganhar o campeonato e tudo, mas nunca fui o mesmo piloto depois daquilo. A experiência que eu tive eu repassei para o Massa. Eu falei: “Olha, o Massa vai ter problema”. Se foi ou não foi, não sei. Mas eu tive esse problema. Bater com a cabeça é muito, muito ruim. Tira essa propriedade que você tem, essa finesse que você tem para guiar.
Você contava que ficou muito tempo sem dormir bem...
Minha vida mudou completamente depois daquilo. Passei a não dormir mais. Até hoje eu tenho problema para dormir. Minha carreira acabou ali.
Teve também o acidente de 1992 nos treinos para as 500 Milhas de Indianápolis (Fórmula Indy). Aquilo te fez sofrer demais, você ficou muito tempo de recuperação. Quase levou sua vida, teve risco de amputação. De que forma você vê aquilo hoje?
Fazendo um balanço de tudo, foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Eu parei realmente de correr e fui cuidar da minha vida. E deu certo. Fiz um negócio muito bacana, um produto que importei para o Brasil, e hoje temos mais de 100 mil caminhões funcionando com o sistema. Somos número 1, temos uma firma maravilhosa, temos colaboradores que trabalham conosco há 20 anos. Esse acidente foi uma parede. “Para de correr e vai cuidar da sua vida”. E graças a Deus foi bom.
Mas Indianápolis era uma coisa que você queria tanto realizar, que você voltou no ano seguinte e fez a corrida.
Mas ali era para provar que eu podia guiar ainda. Eu falei “se eu não sentar num carro de corrida, eu vou botar o rabo entre as pernas e voltar para casa”. Esperei um ano, voltei, corri. Não deu certo, o motor quebrou, mas eu fiquei satisfeito.
O que você gosta de fazer fora trabalhar, cuidar da sua empresa?
Só trabalho na parte da tarde. Na parte da manhã mexo nos meus carros velhos, faço motor, tenho uns dois mecânicos que trabalham comigo. E detesto viajar. Por isso que não vou nas corridas. Fico umas semanas fora de casa e me dá uma agonia para voltar para casa.
Está tudo realizado na sua vida?
Agora tenho que prolongá-la, né? Vamos ver se conseguimos prolongar mais uns 20 anos. Mas o resto está bom.